Guia do apagão elétrico para quem tem menos de 30 anos
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Guia do apagão elétrico pra quem tem menos de 30 anos

Atenção! Notícias preocupantes para quem tem medo do escuro! O caso recente do apagão elétrico no Amapá, que deixou diversas cidades do estado sem energia elétrica por mais de 20 dias, mostra que enfrentamos desafios maiores do que os monstros embaixo da cama.

Do dia 3 ao dia 24 de novembro de 2020, o estado do Amapá teve 13 de seus 16 municípios atingidos pelo maior blackout que já aconteceu no país desde os apagões energéticos dos anos 90/2000.

O Brasil apresenta uma situação complexa no setor elétrico, que se agravou desde que começaram os processos de privatização, na década de 1990. Empresas privatizadas, que tomaram parte do processo de distribuição de energia, acabam terceirizando serviços essenciais a outros grupos de investimentos financeiros. É a terceirização da terceirização

O Amapá é um exemplo concreto de como a privatização não melhora, necessariamente, a qualidade dos serviços prestados e não atende ao interesse público.

Vale lembrar que o País tem em curso uma proposta de Reforma Administrativa, encaminhada ao Congresso pelo governo de Jair Bolsonaro, que vem agravar esse quadro.

Quando são promovidas privatizações em massa, ainda se confia no Estado para que as instituições encarregadas de promover algum tipo de controle e regulação possam executar seu trabalho com isonomia. Essa proposta de Reforma dá ao presidente da República a possibilidade de eliminar instituições públicas sem o aval do Congresso, o que pode piorar essa situação de descaso do poder público.

Terceirização da Terceirização

Na prática, isso também faz com que se terceirize a responsabilidade por desastres, como no caso do Amapá, onde 86% das linhas de transmissão são gerenciadas por empresa privada desde 2008. Esse é apenas mais um dos casos que exemplifica a importância das empresas públicas, que têm compromisso com a prestação de serviços ao cidadão e também com a prestação de contas perante à sociedade.

Os prejuízos foram enormes para o estado do Amapá e sua população. Os moradores perderam alimentos e mantimentos, houve aumento no número de crimes e acidentes e as eleições municipais tiveram que ser adiadas. Os relatos divulgados pela imprensa chocam pelo descaso das empresas operadoras do sistema e também do poder público que, em casos como esse, é chamado para resolver a situação.

A história se repete

Mas essa não é a primeira vez que os brasileiros passam por situação parecida. Quem nasceu a partir dos anos 90 não deve se lembrar, mas o “plano de reestruturação” do setor elétrico, realizado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, foi marcado pelos apagões mais icônicos da nossa história recente.

“A reforma” teve como objetivo a redefinição completa do papel do Estado na área. Assim como hoje, os técnicos do governo na época falavam em “mercado livre”, “eficiência”, “limitar as intervenções do Estado”. Enquanto isso, técnicos de carreira da Eletrobras eram chamados a discutir apenas como implementar o modelo imposto, e não alternativas a ele. 

As mudanças conduzidas deixavam clara a visão liberal do governo, como na passagem a seguir.

A privatização em andamento do setor elétrico no Brasil e a implementação de um novo modelo para este setor são parte da transição econômica do Brasil do modelo de crescimento impulsionado pelo Estado para o crescimento impulsionado pelo mercado. Também é consistente com a necessidade do setor de serviços públicos de aumentar a produtividade e reduzir custos através do aumento da eficiência, um objetivo a ser alcançado pela economia como um todo, para uma integração bem-sucedida no mercado global. A privatização do setor elétrico também ajuda a reduzir a dívida do setor público, contribuindo para a sustentação do crescimento a longo prazo do Brasil (Ferreira, 2000).

As consequências não foram positivas para o povo brasileiro, que sentiu as mudanças no aumento da conta de luz, no risco iminente e contínuo de apagões elétricos, na necessidade de racionamento de energia e nas mudanças drásticas no estilo de vida.

País no escuro

O governo já havia sido alertado para o risco de um apagão elétrico de grandes proporções mas, mesmo assim, levou a cabo o plano de privatizações das estatais num momento de especulação das Bolsas de Valores mundiais, com uma supervalorização do real frente ao dólar.

A partir de 1999, com a crise cambial do real, os recursos para o financiamento dessas privatizações e da reestruturação do setor secaram. Havia também forte desarticulação no plano governamental, o que gerou insegurança e falhas no setor. Além disso, o plano enfrentava forte resistência política à época e o governo sufocava a Eletrobrás com falta de recursos, justamente porque visava a sua privatização.

Todos esses fatores, somados ao desabastecimento das usinas hidrelétricas por causa da seca, levaram a um período de constantes interrupções do fornecimento de energia em várias partes do país e a um medo constante da população, já que o País vivia sob ameaça de apagões elétricos de grandes proporções. A solução do governo foi pedir para a população economizar energia.

Onze estados e o Distrito Federal (e o Paraguai) foram atingidos por um blackout, que começou na noite de 11 de março de 1999. Os técnicos levaram quatro horas para restabelecer o fornecimento de energia e cerca de 60 milhões de pessoas ficaram sem luz.

Anos de apagão

A situação se arrastou e, entre 1º de junho de 2001 e 1º de março de 2002, o governo implantou formalmente um racionamento de energia elétrica imposto a toda a população.

Vinheta da MTV, em 2001

Os brasileiros passaram a trocar lâmpadas incandescentes por fluorescentes e a usar radicalmente menos os eletrodomésticos. Na indústria, máquinas alimentadas por energia elétrica foram trocadas por outras a gás, por exemplo. Segundo cálculo do Tribunal de Contas da União, o prejuízo causado pelo apagão foi R$ 45,2 bilhões.

Reportagem do Jornal Nacional, de 2001, mostra os esforços da população para racionar energia elétrica

Em 2002, um novo apagão atingiu dez estados brasileiros e o Distrito Federal. Apenas quatro horas depois, a situação foi normalizada. Segundo as autoridades da época, o blackout foi causado pelo rompimento de um cabo na linha de transmissão Ilha Solteira – Araraquara. Após o ocorrido, o governo criou novos impostos sobre a conta de luz.

Reportagens de 2002 mostram o caos instaurado em São Paulo com a falta de energia

Aprenda a brincar no escuro

Na época, o assunto dominava capas e recheios dos principais jornais do país. Inclusive com críticas de cidadãos à atuação desastrada do governo nas privatizações.

Carta de um leitor na edição de 2 de maio de 2002 da Folha de S. Paulo

Nascia um novo modo de vida. O medo de ficar no escuro era tanto que aqueceu setores da economia como o da locação de geradores elétricos. É isso que mostra a reportagem da Folha de S. Paulo, de março de 2001. As propagandas do item também se multiplicavam.

Além disso, os brasileiros sofriam com privações (como a chamada que diz “descubra como brincar no escuro”) e o aumento no número de acidentes, como mostram as reportagens abaixo:

Com medo de que o racionamento não desse os resultados planejados, o governo começou a preparar o apagão.

Folha de S Paulo, março de 2001

Diante de tudo isso, fica evidente que as privatizações não trazem os benefícios vendidos pelos seus defensores. E, mesmo com todo esse histórico, o governo de Jair Bolsonaro prepara a privatização da Eletrobrás para o próximo ano.

A história se repete como farsa

A Eletrobrás, que sofreu com o subfinanciamento constante do governo Fernando Henrique, segue sendo a maior empresa de energia da América Latina. Em suas 47 usinas está 52% da água armazenada no país.  A iniciativa privada detém 60% da geração de energia instalada no Brasil, 39% da transmissão (que interliga o sistema) e 71% da distribuição (que entrega a energia ao consumidor final).

Elas operam em cima de lucros exorbitantes, enquanto o consumidor sofre com os preços na conta de luz. Segundo a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), o custo médio da tarifa residencial, nos primeiros seis meses de 2020, ficou em R$ 135,05 no Brasil. Este custo médio do preço da energia residencial, representa 10% do rendimento mensal domiciliar per capita para famílias esmagadas pelo peso da crise financeira nacional e da epidemia do coronavírus.

Proteger as empresas públicas é prezar pela garantia e a busca de qualidade do serviço oferecido para a população acima do lucro almejado pelo Mercado. A história nos mostra que a máxima liberal do “privatiza tudo” pode nos deixar por anos no escuro.