Consciência Negra: Estado forte também é igualdade
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Consciência Negra: Estado forte também é igualdade

Em 1971, um grupo de jovens negros se reuniu no centro de Porto Alegre para questionar o discurso hegemônico de libertação do povo negro pela Princesa Isabel. No lugar, sugeriam, o 20 de Novembro, dia da morte de Zumbi de Palmares, como data de destaque do protagonismo da luta dos ex-escravizados por liberdade e também para gerar reflexão na sociedade sobre as questões raciais. Essa foi a raiz do Dia da Consciência Negra, celebrado hoje.

50 anos depois, muitos avanços foram conquistados, porém as desigualdades ainda existem e se aprofundam em tempos de crise, como o que estamos passando no Brasil e no mundo. Por aqui, a falta de políticas públicas e de acesso a serviços básicos, como saneamento e saúde, agravou a situação dos mais pobres. Nesses tempos, a população mais vulnerável, incluindo negros e negras, precisam mais do aporte do Estado. Ter um Estado forte e capaz de oferecer serviços públicos de qualidade a essa população não é assistencialismo, é resposta aos impostos pagos e um direito garantido pela Constituição Federal.

A primeira pessoa a morrer de Covid no Brasil foi uma mulher negra

Relembrar é fundamental para não esquecer: a primeira vítima da covid-19 no Brasil foi uma mulher negra, idosa, empregada doméstica. Ela foi contaminada no Leblon, bairro de classe alta do Rio de Janeiro, pela patroa que voltou de viagem da Itália. A pandemia era novidade, mas as relações coloniais e desiguais não. Daí pra cá, essa primeira morte se tornou um retrato fiel de que estávamos atravessando a mesma tempestade, mas não no mesmo barco.

As mulheres negras são as que mais morrem de covid-19 de todos os grupos na base do mercado de trabalho, independentemente da ocupação. Pesquisa realizada pela Rede de Pesquisa Solidária e publicada em setembro deste ano mostra que homens negros morrem mais por covid-19 do que homens brancos independentemente da ocupação, tanto no topo quanto na base do mercado de trabalho, enquanto mulheres brancas morrem menos por covid-19 que homens brancos nas profissões superiores, mas morrem mais nas ocupações da base do mercado de trabalho.

O médico infectologista Unaí Tupinambás explica que essa diferença acontece também nos Estados Unidos e na Europa. “A população negra e periférica tem condições de saúde muito mais precárias”, declara ao site da faculdade de medicina da UFMG.

“Eles moram em condições precárias, trabalham em condições precárias, não podem fazer trabalho remoto e têm que sair de casa para ganhar o pão, pegam transporte público inadequado… Claro que vai impactar mais, infelizmente”, diz.

Reportagem do site Pública revelou desigualdade também na vacinação. Até 14 de março, quando havia apenas 4,5% de pessoas vacinadas, cerca de 3,2 milhões dessas pessoas eram brancas, enquanto apenas 1,7 delas eram negras.

Mais desemprego

Um estudo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Simplificação (SMDEIS) do Rio de Janeiro mostrou que a pandemia também piorou outro cenário já desfavorável para as mulheres negras que procuram emprego no município. A taxa de participação das mulheres negras no mercado de trabalho caiu 9% no primeiro trimestre do ano em comparação com o mesmo período do ano anterior, passando de 56% para 47%, a maior entre os grupos analisados.

Mais violência

A covid-19 escancarou um problema ainda pior que recai mais fortemente sobre a população negra: a violência. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, durante o primeiro semestre de 2020 o país teve 648 casos de feminicídio — 1,9% a mais, se comparado com os mesmos meses em 2019.

Além disso, nesse mesmo período, outra análise feita pelo mesmo Anuário em 12 estados brasileiros apontou que houve aumento de 3,8% nos acionamentos da Polícia Militar com relatos de violência doméstica, totalizando 147.379 chamadas.

O isolamento social confinou as pessoas em suas casas obrigando o convívio diário entre as famílias. Quem mais sofreu com isso foram as famílias em moradias com falta de estrutura adequada e as mulheres vítimas de violência doméstica, o que explica o avanço dos números apontado acima. Mulheres negras e periféricas, que sempre ocuparam os primeiros postos de vítimas, foram as mais afetadas.

Os números mostram a desigualdade abissal que ainda é a base do Brasil e precisa ter seus efeitos mitigados pela presença do Estado:

Mais fome

Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid no Brasil, 11% da famílias que hoje passam fome no País são chefiadas por mulheres (7,7% são chefiadas por homens). 10,7% são de famílias pretas e pardas, enquanto 7,5% são de famílias brancas.

Sobre o serviço público

Dados do IBGE de 2019 mostram que as mulheres negras e pardas são as principais usuárias da atenção básica à saúde. Aproximadamente 70% do público que utilizou o serviço do SUS era composto por mulheres; 60,9%, eram pretas ou pardas. Os negros também dependem mais do acesso à educação em escolas públicas. E, ainda que os dados sejam escassos, pessoas negras dependem também muito da Defensoria Pública, em decorrência do encarceramento maior da população.

A composição do serviço público também reflete o racismo estrutural da sociedade. Dados do governo mostram que, embora sejam aproximadamente 55% da população, negros ocupam 35,6% dos postos no serviço público federal. Eles ocupam apenas 15% das posições hierárquicas mais altas.

Os dados de pessoal com recorte de cor e raça mais recentes, referentes a 2018, foram compilados pela Enap (Escola Nacional de Administração Pública), vinculada ao Ministério da Economia.

Em outubro de 2020, entre os que fizeram a declaração, a parcela de servidores negros na administração federal ficou em 36,8%. A disparidade salarial entre negros e brancos diminuiu, mas ainda persiste. Em 2018, dado mais recente, brancos e amarelos ganharam em média 14% a mais do que negros e indígenas.

Além da diferença salarial, quanto maior o nível de formação dos servidores, menor o número de negros que ocupam esses cargos.

Do total de funcionários públicos que estudaram até o ensino fundamental, normalmente ocupando cargos de nível mais baixo, 60,9% são negros e 31,2%, brancos. A partir do ensino médio a proporção se inverte, com tendência de ampliação da desvantagem para negros.

Pretos e partos são 50,5% dos servidores com ensino médio. Entre os que fizeram ensino superior, eles representam 31% do total. No grupo dos pós-graduados no serviço público, os negros são 29,7%.

Dados reunidos pelo instituto República.org mostram que esse retrato não é exclusivo da administração federal. No município de São Paulo, os negros são 37% da população, mas ocupam 28,6% dos postos na prefeitura.

Para concluir, não poderíamos deixar de falar na PEC 32/2020, proposta de reforma da administração pública proposta pelo governo Bolsonaro, que apenas aprofunda todas as desigualdades apontadas acima, tanto para servidores e servidoras negros e negras, quanto para as populações negras que dependem do serviço público para viver.

Dalila Negreiros, Roseli Faria e Eduardo Gomor, servidores públicos e especialistas e questão racial, afirmam em artigo para o Estadão que promover alterações tributárias, fiscais e orçamentárias é fundamental para garantir equidade no serviço público. E nada disso está presente na PEC 32.

Pelo contrário, ela desmonta serviços públicos, dos quais a população negra é mais dependente, e abre espaço para reduzir concursos públicos, dificultando o acesso de negros e negras ao serviço público.

Lutar contra a PEC 32/20 também é fazer a luta antirracista!