Rogério da Veiga: um problema pouco falado na PEC Emergencial
Debate

Um problema pouco falado na PEC Emergencial (186/2019): o decreto de calamidade pública

Rogério da Veiga

PEC é uma Proposta de Emenda Constitucional que tramita no Congresso Nacional. Para ser aprovada, precisa de 308 votos na Câmara dos Deputados e 49 votos no Senado Federal, em dois turnos.

Por que a PEC 186/2019 recebeu o nome de PEC Emergencial? Porque sua ideia original era determinar ações que deveriam ser tomadas pela União, Estados e Municípios em caso de emergência fiscal que, na definição da PEC, seria a iminência de descumprimento do teto de despesas constitucionais.

Se isso acontecesse, os governos poderiam reduzir salários, demitir servidores, cortar subsídios e outras ações até que os gastos estivessem dentro dos limites colocados. 

Raramente uma proposta legislativa termina como começou e isso não foi diferente com a PEC 186/2019. No meio do caminho, ela virou uma pré-condição para a aprovação de um auxílio emergencial, as medidas a serem tomadas em caso de “emergência fiscal” se alteraram e incluíram na emenda medidas excepcionais a serem tomadas em caso de calamidade pública. Escrevi um texto mais completo sobre o que foi aprovado no meu blog pessoal

Muito se debateu sobre os gatilhos, a proposta inicial de desvincular recursos da saúde e da educação, redução de recursos de investimento do BNDES, redução de rendimentos e congelamento de salários de servidores públicos, mas pouco se debateu sobre este ponto específico. 

O Brasil precisa incluir na Constituição, de maneira permanente, um conjunto de regras e limites que deixam de valer em caso de calamidade pública? Quais as vantagens e quais os riscos?

Um cheque em branco na Constituição?

A PEC 186/2019 cria o “regime extraordinário fiscal” em caso de calamidade pública de âmbito nacional decretada pelo Congresso Nacional por iniciativa privativa do Presidente da República. É o que diz o Art. 167-B:

“Art. 167-B. Durante a vigência de estado de calamidade pública de âmbito nacional, decretado pelo Congresso Nacional por iniciativa privativa do Presidente da República, a União deve adotar regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades dele decorrentes, somente naquilo em que a urgência for incompatível com o regime regular, nos termos definidos nos arts. 167-C a 167-G.”

Em que consiste o “regime fiscal extraordinário”? Esse é o tema dos Art. 167-C a 167-G. Durante a calamidade, não se aplicam os limites estabelecidos pelo teto de gastos, a regra de ouro (é proibido contrair dívida para pagar despesas correntes) e outros limites da Lei de Responsabilidade Fiscal. Também permite a contratação de pessoal, obras, serviços e compras de maneira simplificada. E a cereja do bolo: permite conceder ou ampliar incentivos tributários. 

Em uma calamidade, a prioridade deve ser combatê-la. Não se questiona a necessidade de afastar limites legais que dificultam o gasto e regras que possam atrasar a tomada de medidas para superar a calamidade. Na pandemia de coronavírus, alguém vai ser contra permitir que o Governo compre vacinas? Ou pague auxílio emergencial aos mais vulneráveis? Dificilmente. 

No caso da atual calamidade que vivemos, não houve essa dificuldade. O Congresso aprovou rapidamente um regime fiscal extraordinário com a aprovação de uma PEC apelidade de orçamento de guerra, que permitiu que o governo federal tomasse as medidas que considerou necessárias. O país pagou quase R$ 300 bilhões em auxílios, reservou recursos para a compra de vacinas, criou programas para manutenção de empregos, subsidiou linhas de crédito, adiou o pagamento de impostos. Não faltaram instrumentos para combater a pandemia. 

A dúvida é: o Brasil deve colocar o “regime fiscal extraordinário”, em caso de calamidade, de maneira permanente na Constituição? O Brasil precisa desse atalho para enfrentar uma calamidade?

Minha percepção é que não. Calamidades públicas de nível nacional são eventos raríssimos. O risco, no Brasil, é que este instrumento seja banalizado sempre que o Presidente da República e o Congresso Nacional estejam em apuros. Uma taxa de desemprego de 30% é uma calamidade pública de nível nacional? 20% das pessoas em situação de extrema pobreza é uma calamidade pública de nível nacional? Um vírus que mata mais de 1.500 pessoas por dia é uma calamidade pública de nível nacional?

Com a aprovação da PEC 186/2020, qualquer coisa pode virar calamidade de nível nacional. Basta o Presidente da República tomar a iniciativa e o Congresso Nacional, por maioria simples, concordar. 

O médio/longo prazo preocupam, mas os impactos já poderão ser sentidos logo ali. Se a situação política do presidente continuar se deteriorando e o centrão aumentando o preço de manter o apoio ao presidente, podemos ver esse instrumento ser acionado por causa da pandemia. 

O presidente estende a calamidade do coronavírus, boicotando ações de prevenção ao contágio como as medidas de restrição à circulação de pessoas, atrasando a distribuição de vacina e estimulando o uso de remédios que não funcionam para gerar uma sensação de segurança na população, entrando em conflito com governadores e prefeitos. A crise não passa, as mortes aumentam, pede-se ao Congresso um decreto de calamidade pública para resolver uma calamidade que ele mesmo criou. Consegue, com isso, ficar livre de qualquer amarra fiscal para fazer as políticas públicas que agrade sua base.

Não há nenhuma necessidade de se colocar permanentemente na Constituição um atalho dessa natureza. Se tiver calamidade, aprova-se um regime fiscal extraordinário específico para aquela calamidade, tal qual foi feito em 2020. 

Apesar da boa intenção de dotar o país de capacidade de responder mais rapidamente a uma crise de grandes proporções, o risco de mau uso desse instrumento é muito maior que o problema que visa responder porque, sempre que for preciso, o Poder Executivo e o Congresso já têm os instrumentos para dar respostas rápidas.

A inclusão dos artigos 167-B ao 167-G nessa PEC, agora, no meio da crise do coronavírus, é um sinal da intenção de utilizar esse instrumento no curto prazo, caso a crise se amplie, o que parece ser o caso. Infelizmente, não seria para salvar o país da pandemia, mas sim para salvar o governo Bolsonaro e irrigar as bases dos parlamentares com bilhões de reais.  

O país vai se endividar como nunca, mas não para investir, ampliar sua produtividade, gerar empregos, melhorar a economia. Vai se endividar para salvar o presidente e matar a fome do centrão, sem projeto para o país, sem planejamento, sem racionalidade, sem eficiência, ao sabor de interesses políticos e eleitorais  do presidente e seu entorno.

Rogério da Veiga é Servidor Público Federal, integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental