Brasil vive apagão da ciência: caso CNPq é prova -
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Brasil vive apagão da ciência: caso CNPq é prova

Não é segredo que temos vivido um verdadeiro apagão da ciência nos últimos anos. Desde a aprovação da PEC do Teto de Gastos, em 2016, a área vem sofrendo com os cortes de orçamento.

Sob o comando de Jair Bolsonaro, que assumiu a presidência da República em 2019, a situação piorou ainda mais. Além de orçamentário, o boicote é ideológico. Hoje, nos vemos tendo que defender a óbvia necessidade de investimento em pesquisa e ciência em meio à maior pandemia do século, enquanto debatemos com pessoas que ainda defendem o terraplanismo.

O desmonte, embora atinja algumas áreas de forma mais contundente, infelizmente é geral. A proposta de Reforma Administrativa do governo, encaminhada ao Congresso Nacional na forma da PEC 32/2020 é o exemplo claro de que o apagão do Estado brasileiro é um projeto de governo e vem para atingir a prestação de serviços públicos.

De 2007 a 2016, o orçamento destinado ao Ministério de Ciência e Tecnologia foi um dos maiores já vistos na história do Brasil, atingindo o pico em 2015, com R$ 14 bilhões investidos. Para este ano, o CNPq tem o menor recurso destinado do século, segundo informações do Jornal O Globo, com apenas R$ 1,2 bi.

E o resultado não podia ser outro. Nesta terça-feira (27), pesquisadores e servidores vieram às redes sociais denunciar que a plataforma Lattes do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) estava fora do ar há cinco dias.

A plataforma, que guarda informações sobre os currículos e pesquisas dos cientistas, saiu do ar devido a um servidor que queimou. Apesar das tentativas do governo de tratar o episódio como um mero acidente, o presidente do Sindicato Nacional dos Gestores em C&T (SindGCT) Roberto Muniz, denuncia que o equipamento estava sem contrato de manutenção desde 2018.

Em entrevista para o Que Estado queremos, Muniz fala sobre o sucateamento do órgão e o descaso dos últimos dois governos com o investimento em ciência e tecnologia.

QEq: Esse evento com um servidor queimado podendo ocasionar na perda de arquivos da Plataforma Lattes se relaciona como com o desmonte da política de C&T?

Roberto Muniz: O principal servidor teve um problema, parou de funcionar, porque é um equipamento que estava sem contrato de manutenção desde 2018, e há muito tempo fora da garantia. Até onde sabemos, não houve perda de dados, mas essa não é uma afirmação que podemos fazer de forma categórica. Sabemos que não apagou totalmente.

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação quer apresentar isso como acidente, mas nossa visão é diferente. Numa instituição pública como o CNPq, que trabalha basicamente com base de dados, lá não funciona tudo, e-mail, telefone, que é por VoIP (telefonia via internet)… é um apagão completo.

QEq: Como é a situação dos funcionários públicos em termos de cobertura das demandas e necessidades atuais?

Roberto Muniz: Os funcionários não conseguem ver o currículo e atender os pesquisadores. A plataforma Carlos Chagas não funciona e é por meio dela que nós publicamos os editais e recebemos as propostas de projetos de pesquisas e analisamos esses projetos, implementamos pagamentos de bolsas, realizamos prestação de contas. Os servidores, os analistas em ciência e tecnologia não conseguem fazer absolutamente nada, estão de mãos atadas. Com esse quadro, como podemos aceitar que um equipamento dessa importância esteja desde 2018 sem um contrato de manutenção? Isso mostra que não foi mero acidente. Um segundo aspecto é não ter um equipamento reserva pra caso esse dê problema, como aconteceu. Por que não tem?

Não tem porque não se dá a importância devida, desde o governo Temer, às infraestruturas que sustentam a pesquisa. O governo vem reduzindo o orçamento para as agências de pesquisa, como CNPq, Capes, de forma brutal. O CNPq talvez seja o exemplo mais gritante dessa redução porque está hoje com o menor orçamento das últimas duas décadas. Em 20 anos o país cresceu, aumentou a demanda por pesquisa em ciência e tecnologia, aumentou o número de pesquisadores, de pós-graduandos, e o CNPq diminui os recursos pra atender essa demanda. A gente às vezes olha apenas para os orçamentos de bolsa e esquece de olhar pra aquilo que dá suporte a isso. O CNPq é o órgão de fomento. Sem ele, os recursos não chegam ao pesquisador, não há política pública implementada, por descaso do governo. Esse descaso se reflete quando a gente olha a situação dos servidores públicos que atuam na área.

QEq: Há quanto tempo não se realizam concursos para o CNPq?

Roberto Muniz: 2015 foi o último concurso e o órgão vem perdendo quadros. O CNPq hoje conta com 300 servidores. Na área de TI são menos de 6. Porque não se realizam concursos, não existem planos de carreira atraentes, não se reforma a carreira pra atrair gente qualificada em TI. E essa parte fica toda terceirizada, abrindo vulnerabilidades, deixando essa parte estratégica dos sistemas na mão de empresas terceirizadas, que podem cumprir ou não os contratos e a gente não consegue ter controle efetivo.

QEq: Podemos afirmar, então, que existe um processo de terceirização na área?

Roberto Muniz: Outras áreas tb estão sendo terceirizadas como prestação de contas, contabilidade, planejamento financeiro. O governo vem empobrecendo ações da carreira. Cada vez mais os dirigentes têm diminuído nossas atribuições. Foi falta de investimento geral que levou a esse apagão do CNPq e principalmente falta dessa visão estratégica que nós, servidores, temos. A gente vem apontando que os sistemas do CNPq já tinham problemas há tempos e os gestores ignoraram para investir em aplicativos enquanto que a infraestrutura inclusive para manter esses aplicativos funcionando era deixada de lado.

Tudo isso na verdade se trata de uma visão de uma política deliberada adotada pelos dois últimos governos de não desenvolver ciência e tecnologia no País. Qualquer coisa se compra pacotes tecnológicos lá fora. Existem problemas no País que não podem ser resolvidos por empresas estrangeiras, isso vai cortar nossa autonomia e nossa soberania. E vai empobrecer o desenvolvimento brasileiro.