Cardoso Jr: "Reforma Administrativa é tiro no escuro completo"
Debate

Cardoso Jr: “Reforma Administrativa é tiro no escuro completo”

Mesmo sem apresentar qualquer estudo complementar que comprove suas teses, o governo entregou ao Congresso, em setembro de 2020, a PEC 32/2020, uma proposta de Reforma Administrativa. A justificativa da equipe de Bolsonaro e Paulo Guedes é que o Estado brasileiro é inchado, caro e ineficiente.

No entanto, tais argumentos têm causado revolta entre os servidores públicos e organizações da sociedade civil, que veem na iniciativa do governo uma tentativa de precarizar os serviço públicos oferecidos pela população.


É isso o que diz José Celso Cardoso Jr, que é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea*² e presidente da Afipea-Sindical*³. “O Estado brasileiro não é grande, em termos comparativos. As comparações internacionais mostram que o emprego público no Brasil está abaixo da média da OCDE*₄”, diz.


Em entrevista exclusiva ao Que Estado Queremos? Cardoso fala sobre os pontos mais controversos da proposta do governo, como a questão do fim da estabilidade, e comenta o porquê de a qualidade dos serviços públicos no Brasil ser a melhor da América Latina. Confira:

Que Estado Queremos?: O discurso de que a Reforma Administrativa vem para combater privilégios e diminuir as desigualdades do Brasil é verdadeiro?


Cardoso Jr.: Falso. O discurso bate em três aspectos e os três são falsos. O primeiro é que o Estado brasileiro é grande, caro e ineficiente. O Estado brasileiro não é grande, em termos comparativos internacionais, tanto comparando o Brasil com países da OCDE em termos de pessoal ocupado no setor público sobre a população total, como comparando apenas com o número de pessoas ocupadas no mercado formal ou total, as comparações internacionais mostram que o emprego público no Brasil está abaixo da média da OCDE em termos comparativos. Então o Estado brasileiro não pode ser considerado grande em termos de máquina inchada. Isso é uma bobagem completa.

Na verdade, em termos de pessoal, o Estado brasileiro é pequeno, precisaria dobrar o percentual de funcionários públicos com relação ao que temos hoje por uma razão muito simples. A distribuição setorial do emprego público no Brasil é muito desigual. Existem áreas com muita gente, como as Forças Armadas, e áreas com pouca gente, como a saúde e a segurança públicas. Em termos regionais também, no caso, norte, nordeste, centro-oeste, vimos recentemente que existem poucos funcionários públicos no combate ao desmatamento e queimadas.

Em segundo lugar, o Estado brasileiro não é caro, do ponto de vista de gasto com pessoal, e a despesa está estável há muitos anos. Nunca, por exemplo, no âmbito federal, o gasto com pessoal passou do limite da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Por fim, o governo tenta dizer que o Estado brasileiro é ineficiente, mas o governo não apresentou nenhum estudo, nenhum número, que mostre essa ineficiência.

Dada a abrangência da atuação governamental, dado o fato de que nos últimos 20 anos, pelo menos, o governo aumentou muito a capacidade de ofertar pra população bens e serviços públicos, com o mesmo quantitativo de servidores, você teve um aumento da eficiência do Estado em relação ao passado.

Que Estado Queremos?:Por que a estabilidade não pode ser encarada como privilégio?


Cardoso Jr.:
Óbvio que não é privilégio. É uma condição necessária para garantir que o Estado seja capaz de continuar oferecendo bens e serviços públicos à população ao longo do tempo, de maneira permanente.

Imagine uma família que gostaria de se mudar de uma cidade grande e insustentável como São Paulo para o interior do Piauí , ela precisa saber se lá vai ter escola pública, posto de saúde, energia elétrica… ou se vão viver na base do apagão do Amapá. Ou seja, quem oferece essa segurança, essa permanência da política pública é o Estado por meio dos servidores, por meio da estabilidade.

O que garante a continuidade da política pública ao longo do tempo, perpassando governos e gerações de servidores, é a estabilidade. A estabilidade é uma condição necessária para permanência e previsibilidade da política pública ao longo do tempo, além de ser uma segurança jurídica de que os servidores públicos não serão demitidos, ameaçados, perseguidos pelo governo de plantão, como está acontecendo agora.

O assédio institucional no setor público é justamente esse conjunto de ameaças, de retaliações, de inviabilização da política pública, como está acontecendo nos casos da Funai, do Ibama, do ICM-Bio, do IBGE, do Inpe, e outras tantas entidades que estão sofrendo assédio institucional, que recai, em última instância sobre os próprios servidores públicos.

Aquele caso da guarda-civil de Santos que multou o desembargador porque não estava usando máscara e o cara deu uma carteirada. Se o guarda não for estável , ele vai ser demitido na mesma hora. Com a estabilidade, ele está garantido. Então está longe de ser um privilégio, é uma condição necessária para a permanência e a previsibilidade da política pública.

Que Estado Queremos?: Em nota técnica, o senhor diz que a Reforma desorganiza ao invés de aperfeiçoar a administração governamental. Por quê?

Cardoso Jr.: A PEC 32 desorganiza muito mais do que aperfeiçoa a administração pública porque ela afronta os cinco princípios de organização da atuação da função pública:

  • A estabilidade, que vai ser destruída pela PEC 32, se ela for aprovada como está.
  • A remuneração adequada e previsível do servidor, que vai ser flexibilizada e rebaixada, se for aprovada a PEC 32.
  • A qualificação elevada dos servidores na entrada por meio do concurso público vai ser rebaixada, porque vão existir outras formas de contratação que sequer precisarão de concurso. E a capacitação permanente ao longo do ciclo laboral também vai piorar, porque lá no meio da proposta do governo tem a ideia de acabar com a Inape, com as escolas de governo, e transferir isso pro mercado, para cursinhos de curta duração de baixa qualidade.
  • Cooperação. Se pretende introduzir o critério de concorrência entre os servidores pela produtividade, pela tal da “eficiência” no setor público. Conceitos esses que são importados de maneira acrítica do setor privado para o setor público. Quando, na verdade, no setor público, o fundamento que organiza e que aperfeiçoa a função pública é a colaboração no ambiente de trabalho, e não a competição entre servidores.
  • A questão sindical. Por várias formas, o governo já vem tentando dificulta e impedir a livre organização e atuação sindical no setor público, e claro que o objetivo disso é quebrar a resistência dos servidores no que diz respeito às suas pautas coletivas, como a reforma, o rebaixamento de salário, a demissão imotivada…
Que Estado Queremos?: Como se deu a experiência de Reforma Administrativa em outros países? O modelo foi parecido com o Brasil e foi bem sucedido?

Cardoso Jr: Em termos de comparação internacional, o caso brasileiro é um caso de sucesso. Desde a Constituição de 88, não só mudou para melhor a composição do emprego público no Brasil, ou seja, as pessoas hoje empregadas no setor público ingressam apenas mediante concursos, então filtram pessoas bem informadas, qualificadas.

Segundo, a escolarização média dos funcionários públicos hoje no Brasil é muito maior do que no setor privado, porque já é um requisito de entrada no setor público.

Terceiro, essa mudança de composição vem acompanhada de um aspecto muito importante; hoje você tem menos servidores em áreas administrativas e muito mais em áreas finalísticas das políticas públicas.

Então, o foco da contratação do setor público nos anos 2000 foi contratar servidores para atuar na ponta da política, na prestação direta de serviço para a população.

No Panorama das Administrações Públicas da América Latina, é feita uma comparação em termos de meritocracia no setor público e o Brasil é o que tem o setor público mais meritocrático de todos os países da América Latina.

É claro que na Europa a situação é muito melhor em termos de emprego público, e é muito parecida com aqui, tem estabilidade, a remuneração é boa… a gente tem que buscar esse paradigma, e não o da precarização, como fonte de sucesso.

O que o governo faz é um malabarismo retórico para tentar mostrar que o privado é melhor. Sendo que, no caso brasileiro, está no setor privado a precarização do emprego, a rotatividade, os baixos salários, onde não tem proteção social, onde não vai ter previdência para os novos trabalhadores.

Na verdade, é o modelo do setor privado que precisa mudar. Existem aperfeiçoamentos a serem feitos no setor público, mas em essência ele está estruturado de modo correto e virtuoso.

Que Estado Queremos?: Existe algum estudo apresentado pelo governo que comprove a eficiência da proposta?

Cardoso Jr: O governo não tem nenhum estudo que comprove a necessidade da reforma nos termos em que ele coloca, que comprove o acerto das medidas que ele sugere serem importantes para o aumento do desempenho, pra economia de custo e etc.

A reforma administrativa, na verdade, não é administrativa porque não se destina a melhorar a estrutura e a forma de funcionar do governo, mas é parte de uma reforma fiscal, que começou em 2016 com a PEC do Teto de Gastos e continuou com a Reforma da Previdência e a Trabalhista, as PECs 186, 187 e 188, e a PEC 32, que são todas propostas de reforma constitucional que visam reduzir custos do Estado. E reduzir nem sempre é melhor do que aumentar, isso é importante e deve ser dito.

Portanto o governo não só não tem nenhum estudo que embase tecnicamente as suas propostas, como sequer tem um estudo que aponte para as economias ou para os ganhos de eficiência que poderiam vir dessas medidas. É um tiro no escuro completo.

Glossário
  1. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) é uma atualização, um emendo à Constituição Federal.
  2. Ipea – A fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada é uma fundação pública federal vinculada ao Ministério da Economia.
  3. Afipea – Associação dos Funcionários do Ipea.
  4. OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou é uma organização econômica intergovernamental com 37 países membros, fundada em 1961.