Clara Marinho: A agenda antirracista é uma agenda democrática
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Clara Marinho: A agenda antirracista é uma agenda democrática

Neste dia 20 de Novembro, em que é celebrado o Dia da Consciência Negra, conversamos com Clara Marinho, conselheira da Assecor (Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento) e fellow das Nações Unidas para a Década Afrodescendente, sobre racismo estrutural, a questão racial no serviço público e possíveis alternativas para mitigar desigualdades e promover mais inclusão.

Clara também é servidora pública e está na lista das 100 pessoas negras mais influentes do mundo, ação da ONU para identificar pessoas que se destacam em vários campos de atuação.

Premiada na categoria “ativismo e humanitário”, Clara Marinho é baiana e atua como analista da carreira de planejamento e orçamento, além de ser ativista sobre orçamento público relacionado a gênero e raça.

Foi cotista e já trabalhou com políticas sociais e de direitos humanos. Também participou da implementação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial e participou do Programa Marielle Franco, direcionado para acelerar a formação de lideranças femininas negras.

Como vc enxerga a administração pública hoje levando em conta a questão racial? Ela reflete as diferenças que vemos na sociedade?
Eu entendo que a administração pública federal ainda tem muito o que avançar no que diz respeito à representação proporcional da população brasileira em seus quadros. Especialmente os cargos de tomada de decisão têm baixa representação de pessoas negras, principalmente de mulheres negras. Então é uma agenda de democratização das posições no Estado brasileiro fazer com que a tomada de decisão fique mais próxima da população que o Estado atende.

As questões raciais se aprofundam mais ainda se levarmos em consideração o viés de gênero?
As mulheres negras são a base da pirâmide social brasileira e eu entendo que é uma tarefa por cumprir realizar políticas públicas que melhorem suas condições de vida. O que a gente tem hoje são as mulheres negras tendo alguns dos piores indicadores sociais. Quando falamos em políticas públicas pensadas para essas mulheres, ainda falta um olhar específico que se traduza em programas melhor desenhados, em uma implementação que assegure os direitos e um controle que esteja atento a essas questões. Por exemplo, quando a gente fala em mortalidade materna, os números para mulheres negras são escandalosos, muito acima da média global. Então, o que a gente pode fazer para melhorar as condições de vida dessas mulheres? Essas preocupações ainda precisam de um tratamento na burocracia.

Você acha que avançamos em algum momento nessa questão mas estamos retrocedendo?
O Estado brasileiro proporcionou avanços relevantes para a população negra. Entendo que as cotas no serviço público e especialmente as cotas na universidade são ações de grande relevância porque sinalizam não somente um acolhimento de trajetórias vencedoras nas escolas como melhores posições no mercado de trabalho. Entendo que a regulamentação do mercado doméstico também é um avanço, mas tem toda uma agenda de direitos ainda por ser completada. O Estatuto da Igualdade Racial ainda pode ser um fundamento mais frequentemente utilizado para a decisão das políticas públicas. Então a gente ainda tem muito que avançar e eu entendo que o cenário internacional aponta para a necessidade de novos avanços, principalmente para a necessidade de enfrentar a violência policial.

De que maneiras a PEC 32/2020 vai piorar as desigualdades raciais no serviço público se for aprovada?
A reforma administrativa pode ser encarada como a reforma do trabalho no setor público. A população negra ocupa, historicamente, as condições mais precárias do mercado de trabalho. Então, entendo que tem um componente que pode ampliar a desestruturação do mercado de trabalho, porque a reforma administrativa retira de cena várias premissas constitucionais para a execução do serviço público. Eu temo que a gente afaste a população negra ainda mais dos espaços de tomada de decisão sobre as políticas públicas que lhe afetam, na medida em que ela fique restrita às ocupações públicas mais precarizadas dentro do setor público.

Como você enxerga o racismo institucional no serviço público?
O conceito de racismo institucional é útil pra pensar as melhorias no setor público porque se trata de mudar práticas que obstam direitos iguais para a população. Então, é quando o serviço é prestado de um jeito para uma pessoa negra e de outro jeito para outros extratos populacionais. Sendo assim, eu entendo que essa é uma ferramenta que pode ser largamente utilizada para contornar a dificuldade de acesso aos serviços públicos. Porque a gente tem muito o que avançar, principalmente na saúde e na educação, setores em que vários estudos mostram a diferença de tratamento dada a crianças negras e brancas. No sistema de saúde, que é expresso de forma contundente pela maior mortalidade de pessoas negras em relação às pessoas brancas. Então, o conceito de racismo institucional pode ser utilizado largamente na administração pública porque cidadãos negros têm garantidos seus direitos na Constituição Federal, no entanto, são tratados muitas vezes como não merecedores disso. O racismo é, sobretudo, sobre desumanização. Se a gente não acolhe a humanidade e cidadania da população negra na prestação de serviços públicos, estamos deixando de concretizar nossa democracia. Por isso, a agenda antirracista é uma agenda democrática, porque ela significa fortalecer e concretizar os direitos assegurados na Constituição de 88.