Incluída na PEC 186, constitucionalização da avaliação pode frear políticas públicas, avalia Jannuzzi - Que Estado queremos?
Debate

Incluída na PEC 186, constitucionalização da avaliação pode frear políticas públicas, avalia Jannuzzi

Paulo Jannuzzi concedeu entrevista ao Que Estado queremos?

Muito se debateu nas últimas semanas sobre a PEC Emergencial (PEC 186/2019), que tramitou e foi aprovada pelo Congresso Nacional, sendo convertida na Emenda Constitucional 109. As discussões se concentraram na aprovação do Auxílio Emergencial, nos gatilhos fiscais e, principalmente, nos efeitos nos serviços e servidores públicos. Como a PEC reuniu assuntos muito diversos, um tema passou ao largo desses debates – a inclusão, no artigo 37 da Constituição Federal, do seguinte trecho: 

“Parágrafo 16. Os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei”.

Avaliação de políticas públicas é uma etapa do ciclo de gestão da Administração Pública que cada vez se mostra mais relevante no alcance dos resultados dos programas e ações junto à população. A previsão constitucional de que os órgãos públicos devam realizar pesquisas e divulgar os resultados alcançados é uma inclusão significativa. Mas será que era necessária? A decisão muda a forma como os governos têm estruturado seus sistemas de avaliação?

Para compreender o que essa inclusão representa e como se concretizará a medida, entrevistamos Paulo de Martino Jannuzzi, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE. Com larga experiência na área, Jannuzzi foi Secretário de Avaliação e Gestão da Informação do então Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome e membro do Painel de Especialistas em Avaliação do International Evaluation Office do Programa das Nações Unidas em Nova York.  

Atualmente, qual é o marco legal em termos de avaliação de políticas públicas?

Nos últimos 5 anos, instituiu-se instrumentos e normativas acerca da necessidade de avaliação de políticas públicas, como a criação do CMAPP – Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas e a institucionalização da Análise de Impacto Regulatório para proposta de novas políticas e programas públicos. Vale também comentar que há um conjunto ainda maior de regulamentações e instrumentos no campo de auditoria e avaliação de desempenho governamental no âmbito da CGU e do TCU que, na perspectiva desses órgãos, se enquadram como Avaliação de Políticas Públicas.

Tomando esse conjunto de instrumentos e normativas no seu conjunto como objeto de avaliação, teriam eles contribuído para densificar, ampliar a eficácia e efetividade da ação governamental? Eu realmente acho que não. Esses instrumentos têm sido empregados, em larga medida, para deslegitimar, reduzir ou conter o avanço de políticas públicas no país, que vinham se estruturando desde o pacto civilizatório de 1988. Ou seja, ao contrário do que se imagina, esses instrumentos não têm se prestado, de fato, para melhorar a qualidade dos diagnósticos de públicos-alvo, identificar gargalos de implementação e dar visibilidade a resultados efetivos de políticas e programas públicos. Tem se prestado, em boa medida, a legitimar decisões ex-ante de descontinuar programas públicos. 

Em qualquer contexto, avaliações não são neutras. Mas são menos ainda quando submetidas às premissas de uma visão minimalista ou simplista de Estado, como nas mãos e mentes de economistas do Ministério da Economia e auditores dos órgãos de controle. Minha impressão é que no setor público e nas universidades há um corpo de servidores e pesquisadores que acham que política pública só deveria existir como ação específica para população pobre, para aqueles que o mercado não consegue oferecer bens e serviços por não disporem de renda suficiente. Para esses, política pública universal e de natureza redistributiva conspiram contra a eficiência econômica e se valem de métodos específicos de avaliação, para demonstrar essas premissas e convicções. 

Desculpe-me a franqueza, mas invariavelmente não há política ou programa social que escape ao veredito de culpado por ineficiência, corrupção ou ineficácia nesse julgamento, com provas criadas nos laboratórios de econometria. Neste tribunal, a política pública tem entrado como culpada antes da análise de qualquer evidência mais robusta.

Incluir esse dispositivo na Constituição Federal pode ser considerado um avanço? 

Incluir dispositivos para fortalecer a necessidade de avaliação na Constituição me parece inapropriado por duas razões pragmáticas. A primeira está associada ao que já comentei anteriormente: só aumentará o risco do uso do instrumento no sentido de produzir evidências contra políticas públicas existentes, relevantes do ponto de vista do marco constitucional de direitos do cidadão, mas que por convicção de uma visão tecnocrática fiscalista não deveriam existir. Poderia tentar ser mais elegante ou elaborado nesse raciocínio, mas, ao fim e ao cabo, essa é a síntese. 

O outro argumento contra a constitucionalização da Avaliação é que mensuração de resultados é apenas uma das atividades de gestão de uma política pública. Acho que a Constituição não é o instrumento normativo adequado para albergar atividades tão específicas. Se for, então que se explicite algo óbvio e esquecido: que as políticas públicas sejam desenhadas e avaliadas segundo os princípios e valores de dignidade humana, justiça, equidade e solidariedade declarados em vários artigos da Constituição. Economicidade e eficiência são princípios meio da Administração Pública, não valores finalísticos para decisão do mérito ou relevância de um programa ou política pública.

Mais importante que constitucionalizar Avaliação de Políticas é continuar investindo na consolidação de uma cultura aprimorada de gestão de Políticas e Programas, nas três esferas de governo, como vinha se fazendo dos anos 1990 até 2016, nas escolas de governo. Formar técnicos e gestores com visão de políticas públicas como imperativos civilizatórios – tal como  foram entendidas no século XX nos países centrais –, dotá-los de conhecimentos especializados e plurais de análise de informação para etapas do ciclo de políticas, de formulação, implementação e avaliação; prepará-los com capacidades política-relacional e técnica-gerencial para lidar com a complexidade de gestão de políticas públicas no contexto federativo e de gravidade das iniquidades do país. Esse esforço fez diferença nos avanços observados nos anos 2000, de queda de pobreza, fome e desigualdade, acesso a emprego, ensino superior e mobilidade social. Compreender Política Pública com dois P maiúsculos é certamente muito mais importante para sociedade brasileira do que reduzi-la, constitucionalmente, a ser objeto de avaliação como se fossem projetos sociais de pequena escala, que têm um financiador preocupado mais como os recursos são usados do que com os efeitos produzidos no curto, médio e longo prazos .

Essa inclusão remeteria à regulamentação em uma lei. Como essa lei deveria ser construída, com quais elementos e por quais atores?

Pois é… acho que temos que fazer esforços normativos mais importantes que burocratizar a produção de conhecimento de uma atividade técnica-científica como Avaliação. Muito mais importante seria se preocupar com a atualização do nosso regramento quanto ao Sistema Estatístico Nacional, datado de 1973, do regime militar. O mundo, o país, as demandas de informação para gestão do Estado, as tecnologias de produção de dados tiveram enorme mudança nesses cinquenta anos e não temos sequer um marco legal que regulamente a necessidade de produção regular de pesquisa sociais, econômicas e ambientais para atualização da agenda de demandas públicas ou formulação de programas. 

Institui-se normas de avaliação de resultados e impactos de políticas, mas não se cria garantias de que teremos recursos, pessoal e organizações com independência política e técnica para produzir censos demográficos e pesquisas nos vários campos programáticos das políticas ou dimensões da realidade. Nossas organizações que produzem informação qualificada e pertinente para elaboração de diagnósticos e sistemas de monitoramento de políticas têm sido sistematicamente deslegitimadas nos últimos anos, e mais ainda nesse contexto de negacionismo e terraplanismo. 

O Censo Agropecuário de 2016 teve a exclusão de um bloco inovador de questões relacionadas aos impactos do uso de agrotóxicos para tornar o questionário mais enxuto, frente aos cortes de recursos disponíveis. Problemas semelhantes de insuficiência de recursos orçamentários têm afetado o planejamento do Censo Demográfico 2020, transferido ainda provisoriamente para esse ano por imposição da Pandemia-Covid. Sem estatísticas fundamentais, como fazer bons diagnósticos e desenho de políticas e programas? Enfim, a normatização sobre Avaliação não pode avançar sem uma discussão mais geral sobre produção de informação e conhecimento, envolvendo IBGE, INEP, INPE, Instituto Chico Mendes e, naturalmente, as universidades, centros de pesquisa, agências subnacionais de estatística e unidades de monitoramento e avaliação dos Ministérios.