O que você precisa saber sobre a vacina contra a Covid-19 no Brasil? - Que Estado queremos?
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O que você precisa saber sobre a vacina contra a Covid-19 no Brasil?

Temos pressa. Cada mês sem vacina são 30 mil vidas a menos. Mais de 210 mil brasileiros já morreram e quase 9 milhões foram contaminados. Atrasado em relação a outros países, o Brasil iniciou a vacinação com 6 milhões de doses no dia 17 de janeiro, quantidade muito abaixo da que o país precisa para controlar a pandemia e proteger os mais vulneráveis. 

A importância do Estado brasileiro e das políticas públicas fica em evidência em momentos críticos como este. A aposta do país na construção de um Sistema Universal de Saúde, em manter capacidade interna de produção de vacinas e medicamentos com a Fiocruz, Butantan e outros institutos de pesquisa e na profissionalização do serviço público é o que dá esperança de que, em algum momento, a crise será resolvida.

Por outro lado, está claro que a profissionalização do estado não é suficiente. Liderança política é fundamental. Sem uma liderança orientando e coordenando as respostas e integrando as ações dos governos com uma política externa a serviço dos interesses do país, tudo fica mais difícil e caro. O caso da vacinação no Brasil é rico em exemplos para compreender as relações entre estado, governo, política e políticas públicas.

Imagem: Laerte / #TodosPelasVacinas

Como uma vacina é inventada?

A invenção de uma vacina é um processo complexo. Os cientistas vão fazendo testes em laboratórios, buscando moléculas, princípios ativos e avaliando o que funciona e o que não funciona. 

Como eles sabem o que testar? Partem de outras vacinas para outros vírus já existentes, outras pesquisas que já estão em andamento e que podem ser aplicadas a outras situações. Às vezes é por acaso, a pesquisa é sobre uma coisa e descobrem um outro efeito que não era esperado e pode ser promissor. 

Quando a vacina passa no teste do laboratório, é hora de testar em pessoas, a chamada fase clínica. São três fases de testes. 

Na fase 1, a vacina é dada para um número pequeno de pessoas para verificar se é segura, se produz imunidade e qual a dosagem. Em geral, nessa fase são testadas pessoas jovens e saudáveis.

Na fase 2, a vacina é dada para mais gente, com características do público-alvo da vacina, para avaliar com mais profundidade a segurança e a resposta imune. 

A fase 3 é uma simulação da vacinação. A vacina é dada para milhares de pessoas e uma parte das pessoas recebe uma solução neutra, sem efeito terapêutico. Os pesquisadores e as pessoas não sabem se estão recebendo a vacina ou o placebo, para evitar análises enviesadas. 

Imagem: Orlandeli / #TodosPelasVacinas

Os testes servem para responder a duas perguntas:

a) a vacina é segura? Faz mal? Teve algum efeito adverso não previsto?

b) a vacina funciona? Se você estiver vacinado, pega o vírus? Se pegar o vírus, fica doente? 

Se a vacina não faz mal e funciona, ela está pronta para ser aplicada na população. Qual garantia temos? O estudo é feito de forma transparente, os dados são revisados por muitas pessoas e pelas agências reguladoras de cada país, que, no Brasil, é a ANVISA. 

Quais vacinas contra a Covid-19 existem?

Quando começou a pandemia, empresas e centros de pesquisa do mundo todo começaram a estudar e desenvolver vacinas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, existem 165 vacinas para covid-19 sendo pesquisadas no mundo. As principais são

1. Astrazeneca/Oxford – empresa farmacêutica com sede no Reino Unido desenvolveu uma vacina em parceria com a Universidade de Oxford. É a vacina que tem uma parceria de produção com a Fiocruz. Tecnologia: adenovírus de chimpanzé (vetor viral);

2. Sinovac Biotech/Coronavac – vacina da empresa farmacêutica chinesa Sinovac, que tem uma parceria com o Instituto Butantã. Tecnologia: covid-19 desativado;

3. Pfizer/Biontech/Fosun – as três empresas, uma americana, uma alemã e uma chinesa, se juntaram para produzir uma vacina. Tecnologia: RNA do vírus;

4. Moderna/NIAID – de empresa americana, desenvolvida em parceria com a Agência Americana de Alergias e Doenças Infecciosas. Tecnologia: RNA do vírus;

5. Sinopharm/Produtos Biológicos de Wuhan e Pequim – vacina de empresa chinesa já aprovada para uso na China. Tecnologia: covid-19 desativado;

6.  Cansino e Instituto de biotecnologia de Pequim – vacina chinesa testada no Paquistão. Tecnologia: vetor viral;

7. Gamaleya Research Institute/Sputnik – vacina russa de vetor viral;

8. Janssen – da empresa Jonhson & Johson,vacina de vetor viral.

Essas são as vacinas em estágio mais avançado de desenvolvimento. O Brasil também tem pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina por aqui, dentre as quais a vacina em desenvolvimento pelo Incor/USP. 

As tecnologias de adenovírus e de vírus enfraquecido são mais comuns e essas vacinas podem ser armazenadas em geladeiras comuns; as vacinas de RNA são tecnologias novas, ainda pouco testadas e com a tecnologia dominada por poucos, exigindo freezers potentes para armazenar e transportar em temperaturas extremamente baixas. 

Qual vacina contra a covid-19 teremos no Brasil?

Cabe ao Ministério da Saúde viabilizar a vacinação de toda população brasileira. Para cumprir essa missão, o Ministério terá que: 

  1. garantir doses em número suficiente; 
  2. ter os demais insumos necessários à vacinação, como seringas, agulhas, estrutura de armazenamento e transporte; 
  3. ter locais de vacinação espalhados em todo território, com pessoal treinado e vacinas corretamente acomodadas; 
  4. assegurar que as pessoas vão até o local de vacinação receber vacina; 
  5. controlar quem recebeu qual vacina e quando para dar a dose certa para cada pessoa.

Há dois caminhos possíveis, não excludentes, para ter uma vacina: desenvolver uma vacina própria ou comprar uma vacina desenvolvida por outros. Há uma corrida por vacinas e o Brasil não está dentre os países que teriam condições de desenvolver uma vacina de maneira rápida. Cabe ao Ministério da Saúde acompanhar o desenvolvimento das vacinas no mundo e costurar acordos de compra com as empresas detentoras de vacinas. 

Imagem: @ceciliatangerina / #TodosPelasVacinas

Dessas dez vacinas mais avançadas, o governo federal colocou todas suas fichas na vacina da Astrazeneca/Oxford, cujo desenvolvimento apresentava-se mais avançado à época das negociações. A compra de vacinas em desenvolvimento trouxe um problema para o Ministério: como comprar um produto que ainda não existe sem saber se ele vai funcionar? A lei de licitações não tem essa possibilidade. 

Por outro lado, não comprar neste momento significaria ir para o fim da fila das vacinas, começar a vacinação mais tarde e contar mais doentes, mais mortes, mais tempo de medidas restritivas e limitações de circulação, mais desemprego e recessão. 

A saída jurídica para o acordo foi uma “encomenda tecnológica”, mecanismo previsto na lei de inovação. O usual em uma encomenda tecnológica é a compra de um protótipo que, caso funcione, amplia-se sua escala. 

No caso da vacina, foram compradas 100,4 milhões de doses. Esse era o risco a correr para produzir uma vacina em tempo recorde: garantir os insumos antes mesmo dos testes clínicos.

Uma vez desenvolvida a vacina, sua fabricação envolve a produção do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), a fórmula para transformar o IFA em dose final da vacina, envase, rotulagem, embalagem e controle de qualidade. O acordo com a Astrazeneca prevê a fabricação da vacina no Brasil pela Fiocruz, a partir da importação do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), cuja produção está concentrada na China e na Índia, e a transferência de tecnologia para fabricação local do IFA, que permitirá que todo o processo seja feito localmente. 

Segundo a Fiocruz, é possível começar a fabricação da vacina a partir do IFA imediatamente; para produzir o IFA, será necessário investimento para adaptação e ampliação de fábricas existentes.  

No acordo, estão previstas 100,4 milhões de doses produzidas a partir de IFA importado e a transferência de tecnologia para produzir o IFA no Brasil. Segundo a Fiocruz, eles conseguirão produzir 110 milhões de doses no segundo semestre. 

O Instituto Butantan, por sua vez, fez um acordo com a Sinovac, empresa chinesa que desenvolveu a Coronavac. Para início imediato da vacinação, o Butantan importou 6 milhões de doses prontas e fabricou outras 4 milhões a partir de IFA importado, que aguardam aprovação da ANVISA.  

O acordo do Instituto Butantan prevê a produção de 46 milhões de doses com IFA importado e outras 54 milhões de doses a partir da transferência de tecnologia e produção de IFA localmente. Essas 100 milhões de doses foram compradas pelo Ministério da Saúde

Por fim, o Brasil aderiu ao consórcio Covax Facility, que vai permitir ao país acessar outras 42 milhões de doses. O consórcio investiu em dez vacinas que começarão a ser disponibilizadas assim que forem aprovadas. Não se sabe qual vacina, a quantidade e quando essas vacinas estarão disponíveis.

Estes são os acordos existentes hoje. O ritmo de vacinação no Brasil dependerá do ritmo de produção de vacinas pela Fiocruz, pelo Instituto Butantan e a entrega de vacinas pelo consórcio da Covax Facility, além de ações complementares que podem ser tomadas no caso de atraso na produção local. 

Teremos vacinas suficientes no Brasil?

Sim. Quando e em que ritmo? Essa é a questão.

O governo federal apostou todas suas fichas no acordo com a Astrazeneca/Oxford. Isso significa que qualquer problema no andamento desse contrato pode atrasar a vacinação brasileira. 

A vacina Coronavac, da parceria entre a Sinovac e o Instituto Butantan, não estava nos planos iniciais do Ministério da Saúde. Sem ela, o Brasil não teria iniciado ainda a vacinação porque a Fiocruz não produziu nenhuma dose até o momento. 

A vacina do Butantan está disponível porque foram importadas doses prontas e conseguiu-se um primeiro carregamento de IFA para a produção local. O Ministério da Saúde tentou importar vacinas da Astrazeneca de um laboratório da Índia, mas não foi bem sucedido. A Índia anunciou uma lista de países que receberão suas vacinas e o Brasil não constava da relação

O acordo entre a Fiocruz e a Astrazeneca previu a importação de IFA da vacina em quantidade suficiente para produzir 100,4 milhões de doses, mas esses insumos ainda não chegaram. Sem a matéria-prima da vacina, não é possível começar a produção e, com isso, o cronograma de vacinação vai sendo postergado. A produção de vacina depende do fluxo ininterrupto de IFA, sempre que houver atrasos na importação, atrasa a produção e atrasa a vacinação. 

A Argentina tem uma planta produzindo IFA da Astrazeneca, que está sendo enviado para o México fabricar a vacina e distribuir para os países da América Latina, exceto o Brasil. O Brasil, que poderia ter uma posição de liderança na América Latina, está patinando para conseguir insumos para sua própria produção.

O mesmo vale para o acordo entre o Instituto Butantan e a Sinovac. Diferentemente da Fiocruz, o governo de São Paulo importou 6 milhões de doses prontas, que já foram distribuídas aos estados, e teve um carregamento de IFA que permitiu produzir 4 milhões de doses. Isso possibilitou o início imediato da vacinação, mas o governo de São Paulo também está com problemas na regularização da importação de IFA para a Coronavac

Há ainda o risco em relação à produção de IFA localmente, tanto da Fiocruz quanto do Butantan. O processo de transferência de tecnologia é complexo: investimentos na construção de novas plantas, compra de equipamentos e treinamento são necessários. Há riscos de atrasos. Nesse cenário, a continuidade da vacinação irá depender da importação de mais IFA e de sua disponibilidade no mercado internacional, dada a intensa disputa por vacinas. 

Se o Brasil conseguir regularizar o fluxo de IFA para a Fiocruz e para o Instituto Butantan para atender os contratos feitos com a Astrazeneca e Sinovac e essas fábricas trabalharem com o máximo de sua capacidade, conseguiremos um bom ritmo de vacinação. 

Terminadas as 146 milhões de doses contratadas a partir de IFA importado, o Brasil dependerá de sua capacidade de produção local pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan, que depende da transferência de tecnologia e dos investimentos na adaptação e ampliação das fábricas. 

O risco de não termos um processo contínuo de vacinação ao longo do ano é real e não é pequeno. A Fiocruz ainda não começou a sua produção e a previsão mais recente é que as doses comecem a chegar para a população entre março e abril. O Instituto Butantan também aguarda a chegada de insumos para retomar a produção de suas vacinas, além do fato de que a produção local ainda não foi aprovada pela ANVISA. 

Pode ser que ao longo do ano novas possibilidades surjam e cubram esta lacuna. A vacina russa fez um acordo com uma empresa brasileira para produzir por aqui; a vacina da Janssen está em testes de fase 3 – a última etapa – no Brasil; a Pfizer já está sendo utilizada em outros países; laboratórios privados foram à Índia negociar a importação de uma vacina indiana; a China aprovou o uso de uma outra vacina produzida pela Sinopharm; o Brasil está desenvolvendo uma vacina própria

A grande questão é que, até que a imunização controle a pandemia, a disputa por vacina será grande e as possibilidades para quem chega depois são menores, ainda mais para um país que tem conquistado a antipatia do mundo por sua política externa. 

Conclusão

O governo federal depositou todas suas fichas em uma única vacina (Astrazeneca/Oxford) e em um processo de fabricação local. Até o momento, não fez acordos para compra de vacinas prontas que permitam dar continuidade à vacinação imediatamente. Ingressou no consórcio Covax Facility, mas ainda não há uma data para disponibilização das doses ao Brasil.

O acordo com a Astrazeneca é bom, prevê transferência de tecnologia e autonomia do país em um futuro breve. O problema não está no acordo, mas no fato de ele não ter produzido uma única vacina até agora e não termos estratégias alternativas para vacinar a população mais rapidamente. Há as vacinas do Instituto Butantan, mas elas não são suficientes. Temos pressa, brasileiros morrem e a economia afunda. Vacinar rápido é fundamental. 

A nossa aposta ainda não produziu nenhuma vacina. No cenário otimista, começaremos a ter vacina da Fiocruz em abril, mas ainda não temos segurança sobre a data da chegada dos insumos no Brasil e se o fluxo será contínuo.

Imagem: Thais Linhares / #TodosPelasVacinas

Se dependesse do Governo Federal, só nos restaria esperar até abril. Graças ao governo de São Paulo, que fez um acordo com a Sinovac por meio do Instituto Butantan, já começamos a vacinação. A diferença entre o acordo do Butantan e o do governo federal é a importação de doses prontas e a garantia de insumos para produção local, que possibilitaram a existência de 10 milhões de doses, das quais 6 milhões já foram distribuídas aos estados. 

A princípio, pelo menos até abril, essa será a única vacina disponível no Brasil e o ritmo de vacinação depende da capacidade do Instituto Butantan de produzir mais doses. Para isso, é fundamental importar o IFA e conseguir autorização da ANVISA para uso emergencial das doses produzidas localmente.  

Os insumos necessários para a produção de 46 milhões de vacinas pelo Butantan e para produção de 100,4 milhões de doses vêm da China, onde estão as fábricas desses produtos. Por que esses insumos ainda não chegaram? A China está com problema na produção? Outros importadores estão sendo priorizados em detrimento do Brasil? É uma retaliação pela forma desrespeitosa com que a política externa brasileira tem tratado a China?  

O abastecimento dependerá de uma política externa ativa para a construção de alianças e soluções de curto, médio e longo prazos. 

A política externa brasileira sempre foi marcada por soberania, respeito, busca de consensos e defesa dos interesses nacionais. Essa nossa postura fez do Brasil um país respeitado e ouvido nos fóruns internacionais. A mudança de direção nos últimos anos coloca em risco esse patrimônio e problemas com a velocidade da vacinação são exemplos de como a política externa pode ter consequências concretas na vida das pessoas. 

Esse é o primeiro teste da diplomacia brasileira e o fracasso é evidente: não conseguimos importar 2 milhões de doses de vacina da Índia, que é muito pouco, e ainda não conseguimos importar insumos para a produção de vacinas no Brasil. 

Vamos torcer para que essas questões sejam resolvidas. Que a diplomacia entenda que países devem manter relação por questões econômicas, comerciais, de saúde pública, e não por afinidade política ou ideológica.

Cada mês de atraso são 30 mil pessoas que morrem de covid-19 no Brasil. Temos pressa.

#TodosPelasVacinas