A proposta de Reforma Administrativa enviada ao Congresso pelo governo Bolsonaro por meio da PEC 32/2020 tem gerado uma série de dúvidas e preocupações, e uma das principais diz respeito à segurança pública.
Da forma como foi construída – ressalte-se, sem qualquer diálogo com a sociedade civil e com as entidades representativas dos servidores públicos – a PEC se apresenta como um verdadeiro desmonte do Estado brasileiro com consequente prejuízo à prestação dos serviços públicos à população.
Uma das mudanças consideradas mais problemáticas é a questão do servidor “trainee”, ou seja, que deverá passar por um período de experiência mesmo após aprovação em concurso público.
Além de o serviço público já possuir o chamado “estágio probatório”, que contempla praticamente a mesma função, esse período de experiência é extremamente problemático, principalmente para as carreiras de segurança pública.
Esse problema grave foi abordado por Edvandir Felix de Paiva, que é delegado de Polícia Federal, em uma das audiências públicas que discutiram a admissibilidade da PEC na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
“Vou dar um exemplo. Há um delegado que fez um concurso e está em vínculo de experiência. Suponhamos que ele tenha chegado a Manaus, ou digamos que não seja Manaus, mas um local mais distante ainda, no interior, porque nós temos delegacia nos lugares mais distantes do Brasil. Ele poderia dizer assim: “Olhem, tenho aqui agora um expediente em que eu vou tratar da devastação da Amazônia, das madeireiras, de pessoas extremamente poderosas, do ponto de vista político e econômico“. Com que liberdade ou com que tranquilidade esse colega vai conduzir uma investigação em uma situação como essa, se ele ainda está concorrendo ao cargo público?”, disse.
Na possibilidade de esse servidor em período de experiência não ter acesso à investigação, qual seria sua função? Esse foi um dos questionamentos levantados por Paiva. “Eu já ouvi argumentos de que esse delegado não teria acesso à investigação. Ele ficaria fazendo o quê, durante esses 2 anos, se ele não vai fazer investigação? Ele vai tirar cópias? Ele vai ser estagiário dos demais delegados? E quem disse que ele será testado, se ele não estiver na função precípua de delegado de polícia? Eu estou dando o exemplo de delegado, por que é a minha profissão, mas poderia dar tantos outros. Na polícia, muito menos; em outros órgãos, eu acredito que seja muito pouco”.
Em artigo para o Jornal O Estado de S. Paulo, Gustavo Mesquita Galvão Bueno (ADPESP) e Dario Elias Nassif (ADPESP) questionam se um servidor em período de experiência poderia ser responsabilizado por seus atos caso não fosse efetivado.
“Ainda, um delegado de polícia, admitido por concurso e atuando na função como “trainee”, caso considerado inapto após o vínculo de experiência, teria seus atos admitidos como válidos? Há que se lembrar que, desde o primeiro dia de trabalho, policiais tomam decisões sensíveis sobre a liberdade dos cidadãos, e o vínculo de experiência promoveria um cenário de insegurança jurídica, além de prejudicar a autonomia técnico-jurídica necessária para o desempenho de uma função extremamente complexa”.
Eles apontam, ainda, outras questões referentes aos profissionais de segurança pública, como a vedação de aumentos indiretos, mesmo nesses casos, em que os agentes atuam em escaladas chamadas por ele de “sobre-humanas” e que sofrem com os piores rendimentos. Lembremos que não são nessas carreiras que estão os “privilégios” do funcionalismo que os defensores da PEC tanto falam em combater.
E apresentam outros exemplos de como as disposições da PEC podem gerar distorções. “A título de exemplo, em uma situação hipotética de investigação da classe política, conduzida por policiais ainda em vínculo de experiência, tais servidores poderiam ser demitidos de forma rápida, alegando-se baixo rendimento na avaliação. Ou, em outra situação igualmente hipotética, um agente de trânsito poderia aplicar multas demasiadamente, a fim de alcançar metas de produtividade e, assim, manter-se em posição classificatória de destaque”.
É inegável que a administração pública precisa, sim, de reformas que garantam sua modernização e maior eficiência. No entanto, da forma como está posta, a Reforma Administrativa do governo afeta os serviços públicos prestados sem oferecer, de fato, algo que valha sua implementação. No caso das polícias, a situação é ainda mais grave, podendo incorrer na precarização da segurança e no aumento da impunidade.