Reforma administrativa: “É simples assim: um manda e o outro obedece” -
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Reforma administrativa: “É simples assim: um manda e o outro obedece”

O que a relação de Bolsonaro com as Forças Armadas tem a ver com a reforma administrativa?

Por Rogério da Veiga, especialista em políticas públicas e gestão governamental

“É simples assim: um manda e o outro obedece”. Essa frase foi dita pelo General Eduardo Pazuello em outubro de 2020. O então Ministro da Saúde tinha feito uma reunião com os governadores e anunciado um acordo de compra da vacina Coronavac, fabricada pelo Butantan. 

No mesmo dia, o presidente Bolsonaro fez uma declaração dizendo que não ia comprar vacina chinesa fabricada pelo Doria, que já tinha mandado cancelar. Ficou um climão, o General Pazuello desautorizado publicamente de maneira vexatória. No fim de semana, o presidente resolveu fazer um afago no Ministro, chamou-o para sua casa. 

O General foi e lá completou o processo de humilhação com essa frase em que promete obediência completa ao presidente. 

Esse não foi o primeiro nem o único caso em que o Presidente submete quadros das Forças Armadas a situações humilhantes e constrangedoras. Ele já enxotou de seu governo os generais da reserva Santos Cruz e Otávio Rego Barros.

Nesses casos, são quadros da reserva, livres para fazerem suas escolhas políticas e se humilharem por elas. O que a lei proíbe é o uso das designações  hierárquicas:

Lei 6.880/80 – Dispõe sobre o Estatuto dos Militares

Art. 28. O sentimento do dever, o pundonor militar e o decoro da classe impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos seguintes preceitos de ética militar:

(…)

XVIII – abster-se, na inatividade, do uso das designações hierárquicas:

        a) em atividades político-partidárias;

        b) em atividades comerciais;

        c) em atividades industriais;

      d) para discutir ou provocar discussões pela imprensa a respeito de assuntos políticos ou militares, excetuando-se os de natureza exclusivamente técnica, se devidamente autorizado; e

        e) no exercício de cargo ou função de natureza civil, mesmo que seja da Administração Pública; e

 XIX – zelar pelo bom nome das Forças Armadas e de cada um de seus integrantes, obedecendo e fazendo obedecer aos preceitos da ética militar.

Militares no governo Bolsonaro

Para seguir a lei e a ética militar, não é General Santos Cruz, General Otávio Rego Barros, General Heleno, General Braga Netto, General Hamilton Mourão, General Ramos.

Ninguém desses nomes é general mais. São os senhores Santos Cruz, Rego Barros, Heleno, Braga Netto, Hamilton Mourão, Ramos que, por livre e espontânea vontade, resolveram participar do Governo Bolsonaro. A lei permite que ocupem cargos, mas os proíbe de usar a palavra General justamente para “zelar pelo bom nome das Forças Armadas”

Talvez esta seja a lei mais descumprida no país, de maneira descarada e despudorada. O sr. Heleno assina General Heleno, o vice-presidente assina General Hamilton Mourão. A lei não vale para eles. 

O caso do General Pazuello é ainda mais grave. Porque ele é um General da ativa. Ele não se aposentou. Um General do Exército brasileiro, um homem cuja missão é defender a pátria contra inimigos externos, um homem que os brasileiros acreditam que teria honra e altivez e serviria de exemplo para a tropa, um homem que deveria ser digno de nossa admiração e respeito pelos sacrifícios que está disposto a fazer para defender o país.

O que vimos na realidade foi humilhação e vergonha. Aceitou o cargo de Ministro da Saúde sem nenhuma condição técnica e política para o cargo. O Ministério da Saúde já é complexo em situações normais, em uma pandemia global cujo combate demanda liderança, gestão e competência, os custos para o país se tornam altíssimos. 

Fez toda sua gestão desastrosa como general da ativa. Quando Pazuello assumiu o ministério, em 16 de maio de 2020, o Brasil acumulava 233 mil casos e 15.633 mortes associadas à covid-19. Entregou o cargo com 11,5 milhões de casos e 280 mil mortes. Colocou nas costas do Exército 215 mil mortes e 11,3 milhões de pessoas que adoeceram devido ao vírus. 

Já fora do cargo, mas ainda como general da ativa, Pazuello passou por uma sessão de humilhação na CPI, onde foi protegido por um habeas corpus que ele mesmo pediu no STF para se manter em silêncio, e lá mentiu, se contradisse muitas vezes, defendeu o indefensável. O Ministério, sob sua gestão, atrasou a compra de vacinas, não se comunicou diretamente com a população para que tomasse medidas de prevenção, fez propaganda e distribuiu pelo SUS remédios que não servem para nada, enganando as pessoas que acreditaram que o remédio poderia ajudá-las na cura da doença. Não liderou o SUS e os brasileiros ficaram à mercê do vírus, que continua fazendo estrago. Tudo isso como general do exército brasileiro.

Para não deixar dúvidas de que Bolsonaro usa Pazuello para humilhar e submeter o Exército, no dia 23 de maio de 2021, Pazuello subiu no trio elétrico, ao lado de Bolsonaro, sem máscara – dois dias depois de pedir desculpas ao povo brasileiro por ir ao shopping center sem máscara – e discursou, descumprindo, mais uma vez, a Lei e o Código de Ética Militar. 

Lei nº 6.880/80 – Dispõe sobre o Estatuto dos Militares

(…)

Art. 45. São proibidas quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político.

Decreto 4.346/2002 – Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército

(…) 

Anexo I

RELAÇÃO DE TRANSGRESSÕES

(…)

57. Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária;

Questionado oficialmente pelo Comandante do Exército, Pazuello disse que não foi a um ato político, mas a um passeio de motocicleta. Ele subiu em um trio elétrico ao lado do Presidente da República que está em campanha constante, fez discurso aos apoiadores, mas não era um ato político. 

Há mais um episódio de humilhação e submissão das Forças Armadas que merece nota: a substituição do Ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. O ex-ministro saiu do cargo com uma nota dizendo que as Forças Armadas devem ser independentes do governo, em uma insinuação de que haveria uma pressão pela politização das Forças. 

Em 27 de maio de 2021, o Presidente da República foi a São Gabriel da Cachoeira (AM), sob o pretexto de inaugurar uma ponte. Levou com ele o Ministro da Defesa, Braga Netto, e o Comandante do Exército, General Paulo Sérgio. Assistido por eles, Bolsonaro discursou: 

“Na política, estamos polarizados. Cada um pode fazer o seu juízo de quem é o melhor ou o menos ruim. Eu duvido que, no fundo, quem porventura fizer análise do que aconteceu no Brasil nos últimos 20 anos erre no ano que vem”

“Vocês decidem em qualquer país do mundo como aquele povo vai viver. Somos seres políticos, se Deus deu esta missão, vamos aproveitá-la no bom sentido”

“Mais do que obrigação e dever, tenho certeza que vocês vão atuar dentro das quatro linhas da Constituição, se necessário for. Estamos longe da normalidade, mas ninguém pode acusar o presidente de ser uma pessoa que não seja democrática”

Este episódio de São Gabriel da Cachoeira prova as suspeitas de todos de que Jair Bolsonaro trocou o Ministro da Defesa e os Comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica para seguir seu projeto de politizar as Forças Armadas. 

No seu discurso, ele busca levar para o seio do exército a polarização política da sociedade brasileira. Ele quer que os militares tenham um lado na política e que coloquem sua força, armada, em defesa de seu projeto político. Às vezes, não é necessário usar as armas de fato, basta a ameaça, como foi o caso do tuíte do então Comandante do Exército, General Villas Boas, sobre a decisão do STF sobre o habeas corpus do ex-presidente Lula, que descobrimos posteriormente ter sido uma decisão do alto comando do Exército. 

Dias depois, saiu na imprensa que Bolsonaro proibiu a divulgação de qualquer nota sobre o caso por parte do Ministério da Defesa e do Exército e pediu ao Exército que Pazuello não seja punido

Não há dúvidas quanto à estratégia de Bolsonaro de politização do Exército. A nomeação de Pazuello para o Ministério da Saúde como general da ativa, a troca do comando das forças armadas, a ida de Pazuello à manifestação, o discurso em São Gabriel da Cachoeira e o pedido para que Pazuello não seja punido são decisões que desafiam a hierarquia militar para fazer uso político das forças armadas.  

E o que isso tem a ver com a Reforma Administrativa?

Tudo. O que Bolsonaro tenta fazer com as Forças Armadas, usá-las como anteparo para seu projeto político, a PEC 32/2020 abre o caminho para fazer com toda a administração pública. No sonho bolsonarista, não existem regras, leis, procedimentos a serem seguidos. Tudo é substituído pela lógica amigo/inimigo, sendo que os amigos não devem ser punidos por suas faltas, têm excludente de ilicitude e os inimigos devem ser expulsos. 

E quem são os amigos? Aqueles que entendem a regra: “um manda, o outro obedece”. A amizade é medida pela obediência cega a quem manda. A PEC 32/2020 traz esse espírito quando acaba com a estabilidade, flexibiliza as regras para a seleção de pessoas, permite a terceirização completa de atividades do estado

Esse movimento já pode ser observado, mesmo sem a PEC 32/2020. Os conflitos na Polícia Federal e as tentativas de intervir nas investigações, os embates com o INPE ainda em 2019 sobre os dados de desmatamento, as substituições realizadas no IBAMA, as sucessivas trocas no Ministério da Educação, em especial no INEP. 

A estabilidade ajuda a proteger a sociedade de ordens ilegais e que prejudicariam a coletividade. Vamos olhar o exemplo da cloroquina no Ministério da Saúde. O Presidente da República decidiu que a cloroquina ajuda no tratamento da Covid-19. Ele pode fazer isso? Na cabeça dele, sim. O conflito com o Ministério da Saúde sobre esse tema começou pouco antes da saída do Ministro Mandetta, em abril de 2020. Naquela época, as perspectivas para a cloroquina já não eram das melhores. 

Nelson Teich assumiu o ministério e um mês depois pediu demissão porque se negou a recomendar a cloroquina no Ministério da Saúde. Nesse contexto, assumiu o General “Um mando o outro obedece” Pazuello, que publicou uma Nota Técnica assinada por todos os secretários do Ministério da Saúde recomendando o uso da cloroquina para tratamento de Covid-19. A Anvisa não endossou; a Fiocruz não endossou. Foram os quadros políticos do Ministério. Quem se recusasse a assinar estaria fora. Ainda sobre a cloroquina, foi relatado na CPI uma tentativa pela Presidência da República de incluir o tratamento da Covid-19 na bula do remédio, burlando todos os procedimentos, o que foi prontamente negado pelo presidente da Anvisa, detentor de mandato com estabilidade à frente da agência. A mesma Anvisa negou o registro da vacina russa Sputnik V, apesar de toda pressão pela liberação. 

Há muitos outros exemplos em que a estabilidade protegeu a população de abusos de poder. Se com estabilidade já é difícil, imagina sem. Um manda, o outro obedece.

Uma reforma administrativa deve buscar resolver os problemas das instituições do país para que elas cumpram melhor o seu papel e entreguem para a sociedade o que se espera dela. 

A PEC 32/2020 enviada ao Congresso Nacional pelo Governo Bolsonaro constitucionaliza essa visão de Estado, em que o governante pode tudo e aos servidores cabe obedecer sem questionar. Esse é o objetivo do fim da estabilidade proposto e a fragilização dos vínculos dos servidores públicos com o Estado. 

O Brasil precisa justamente do oposto: precisa de mais profissionalização da administração pública, uma relação mais transparente e limitada pela lei entre os governantes e servidores públicos. E, por isso, temos que começar afastando essa lógica do “um manda, o outro obedece”. É uma lógica que funciona bem para instituições que precisam de hierarquias rígidas e claras, como é o caso das Forças Armadas. Não funciona bem para gerir o Estado. 

Por isso, uma boa reforma administrativa deve delimitar o papel das Forças Armadas em uma sociedade democrática. Se, para eles, “um manda, o outro obedece”, o lugar deles não é na Administração Pública.

O que esperamos das Forças Armadas brasileiras? Que se mantenham tecnologicamente atualizadas, que compreendam o jogo da geopolítica mundial, que estudem e conheçam os riscos à soberania brasileira, que contribuam para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, que conheçam o território brasileiro e seus principais recursos para protegê-los, que respeitem os outros países e sejam respeitadas, que contribuam para missões internacionais de paz, levando a solidariedade do povo brasileiro ao resto do mundo e contribuindo com uma boa imagem do país no restante do mundo. 

Para que as Forças Armadas desempenhem esse papel, elas devem ter condições adequadas de financiamento, remuneração adequada, instituições que sejam capazes de corrigirem sua rota, mecanismos de controle, incentivos e punições de desvios para que se mantenham com foco na sua missão. 

Quando as Forças Armadas se desviam de seu papel? Quando resolvem participar da política partidária, quando integrantes do Exército, Marinha e Aeronáutica utilizam a boa imagem das Forças Armadas junto à população em benefício próprio – ocupando cargos e recebendo salários acima do teto – e de um projeto político. As Forças Armadas não podem se deixar utilizar politicamente por qualquer governante ou integrante de seus quadros. A instituição deve ter condições de se proteger de comportamentos desviantes e reafirmar seu papel democrático. Não é aceitável generais, coronéis, majores, capitães, tenentes, sargentos, cabos, soldados da ativa ou da reserva ficarem dando opiniões políticas em redes sociais, participando de eventos políticos e usando o prestígio das Forças Armadas para benefício político próprio e de seu grupo.

Esse comportamento de maus militares mina a confiança da população nas Forças Armadas. Cidadãos em uma democracia querem ter liberdade plena de escolher seus governantes sem qualquer tipo de ameaça de violência, intervenção ou tutela. As armas de Exército, Marinha e Aeronáutica não podem ser colocadas a serviço de um projeto político, qualquer que seja ele, nem na prática, nem na retórica.

O uso político das Forças Armadas é péssimo para o país, para o fortalecimento das instituições e para as próprias Forças Armadas. Elas devem ter clareza de seu papel e se restringir a ele. Longe da política, longe dos holofotes, trabalhando discretamente na defesa do país e na promoção dos nossos interesses.  

Uma boa reforma administrativa pode ajudar a resolver estes problemas. Como? Reforçando a separação das Forças Armadas da política e da gestão do Estado brasileiro. Os militares devem se especializar em assuntos de defesa, receber uma formação sólida não apenas em escolas militares, mas também em universidades de ponta do país e no exterior, fazer intercâmbio com outros países, conhecer outras realidades e compreender o mundo em que estão inseridos e seu papel em sociedades democráticas. 

Uma primeira ação importante seria a proibição completa de militares da ativa de ocuparem cargos civis em governos. O Estado brasileiro garante a eles uma remuneração digna, aposentadoria integral, pensões para os cônjuges e filhos, hospitais de uso exclusivo das Forças Armadas, moradia e treinamentos para que se dediquem aos assuntos de defesa e soberania nacional. 

Não é bom para o país e para as Forças Armadas que eles sejam deslocados de suas atividades militares para assumir cargos no Ministério da Saúde, Ministério da Educação e outras funções não-militares. E não é uma questão de terem competência ou não, certamente há militares versáteis que podem desempenhar bons trabalhos em funções alheias às suas atividades militares. É uma questão de desenho institucional e de proteção das instituições e preservação de seu papel. 

O cargo de Ministro da Saúde é político, subordinado ao Presidente da República que é o líder máximo de um projeto político. Não existe Ministro da Saúde que não seja nomeado pelo Presidente da República e que possa ser demitido por ele a qualquer momento. 

Uma outra medida que pode constar em uma boa reforma administrativa é a responsabilização de militares que se desviam do estatuto militar e de seu código de ética. Toda instituição forte possui mecanismos de punição e incentivos para que seus membros sigam as regras estabelecidas, conseguindo se livrar das “laranjas podres” que enfraquecem a instituição. 

O general Pazuello claramente descumpriu a lei quando assumiu o cargo de Ministro da Saúde sem ir para a reserva. Descumpriu de maneira inequívoca quando subiu no trio elétrico ao lado do Presidente da República em um evento político de apoio ao presidente. Um general da ativa não pode ter envolvimento na política, não é uma decisão pessoal, mas uma regra institucional para garantir a separação do Exército do governo de plantão.

Uma reforma administrativa que mexa nesse ponto pode deixar essa situação ainda mais explícita, além de criar instrumentos para garantir que a lei seja cumprida. 

Uma boa reforma administrativa também deve fazer um debate sobre o Ministério Público Militar e o Superior Tribunal Militar para que essas instituições sejam mais transparentes, mais responsáveis e efetivas em sua missão de fazer seguir a lei. 

A PEC 32/2020 apresentada pelo governo não ataca nenhum desses pontos. No atual contexto de uso político das Forças Armadas, de ameaças à democracia pelo uso da força por meio de retórica, mas também por meio de ações concretas, como foi o caso da troca do comando do exército, marinha e aeronáutica, e manifestações nas ruas que defendem abertamente o rompimento do pacto democrático, a disciplina e a despolitização das Forças Armadas é um tema urgente. Assim como a desmilitarização do serviço público.